Histeria e Salpêtrière – Histeria e Salpêtrière

A Histeria está intimamente ligada à origem da Psicanálise. Pacientes histéricas foram tratadas e estudadas por Freud, no início de seus trabalhos, juntamente com o respeitado médico Josef Breuer. Dessa união surgiu o livro Estudos sobre Histeria, de 1895, hoje um dos marcos da Psicanálise. Contudo, a gênese do interesse de Freud pelas pacientes histéricas vem de anos anteriores, vem de seu contato com o famoso médico neurologista francês, Jean-Martin Charcot. Freud foi seu assistente quando foi à Paris por conta de uma bolsa de estudos que obtivera da Universidade de Viena. Com Charcot, Freud tem contato com a hipnose para se tratar sintomas histéricos, e tudo isso vai acontecer em um hospital chamado Hospital Salpêtrière, o qual, à época de Freud, já era uma instituição com quase 230 anos e um passado cheio de muitas histórias.

O maior hospital do mundo
O Hospital Salpêtrière foi construído, a mando do Imperador Luís XIV, em 1656. Originalmente era uma fábrica de pólvora e que foi convertida em hospício para abrigar as mulheres doentes pobres de Paris. O nome Salpêtrière vem da palavra francesa salpêtre, que significa salitre, constituinte da pólvora. Tornou-se o maior hospital do mundo na época da Revolução Francesa de 1789, com capacidade para mais de 8000 pacientes. Todavia, efetivamente, foi um local para se excluir as pessoas indesejadas, um abuso de autoridade, verdadeira afronta aos direitos humanos e absoluta ausência de zelo para com os pacientes. Doentes mentais, loucas, aleijadas, todas eram mandadas indiscriminadamente para o hospital, bem como ladrões, prostitutas e outros que violavam a lei ou não eram bem quistos. A ausência de higiene era notória e muitas pacientes viviam acorrentadas.

A fotografia e a pintura como meios de registro da história
Contudo, quando Freud chegou no Hospital Salpêtrière, ele já era um hospital muito diferente daquele de seus primórdios. Durante a estada de Freud em Paris, já havia no hospital um departamento de fotografia para registrar o desenvolvimento e o tratamento com os pacientes. A Fotografia, enquanto nova técnica de registro de imagens, estava apenas no começo de sua história, lutava para ocupar seu espaço junto à Pintura que, durante boa parte da História da Arte, foi utilizada para registrar todos os acontecimentos, desde os mais simples até os mais complexos em termos de história da humanidade. Para mostrar três momentos muito importantes no desenrolar dos fatos do Hospital Salpêtrière, irei me valer da Pintura.

Uma noite de massacre
Durante o conturbado ambiente que vigorava na França nos anos que antecederam a Revolução Francesa, em 3 de setembro de 1772, uma multidão de pessoas pobres, dos bairros menos favorecidos de Paris, invade o Hospital Salpêtrière com o objetivo de libertar prostitutas que para lá foram levadas e aprisionadas. No movimento de invasão, muitas são libertadas, mas também muitas pacientes consideradas loucas, e ainda acorrentadas, foram arrastadas para as ruas e assassinadas. Um ambiente de absoluta falta de controle dentro do hospital.

A chegada de um novo médico
Em 1774, um dos médicos do hospital decide iniciar uma nova fase no tratamento dos pacientes, trata-se do médico Philippe Pinel, que irá tirar as algemas dos doentes, estabelecerá a separação entre presos e pacientes e iniciará os tratamentos para uma maior higiene no hospital. Este momento, de absoluta importância no modo de cuidado com os pacientes, ficou eternizado na tela pintada por Tony Robert-Fleury em 1776, trata-se da tela chamada Philippe Pinel no Salpêtrière, nela podemos ver o médico dando a ordem para que as pacientes sejam libertadas de suas algemas, podemos ver claramente o modo desumano como eram acorrentadas às pilastras e como viviam esquecidas e em péssimas condições. Próximo a ele, uma mulher vem humildemente beijar-lhe a mão em agradecimento por tê-la libertado. A tela registrou para a eternidade esse momento crucial na história da medicina e da humanidade.

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A pintura expressando as emoções do olhar
Neste mesmo hospital, um outro psiquiatra irá avançar nos estudos dos distúrbios mentais, trata-se do Doutor Étienne-Jean Georget, que foi um dos primeiros a discutir a defesa da insanidade em casos de acusações criminais. Ele também desenvolveu um estudo sobre os diferentes tipos de monomania. Por volta de 1820, para ajudar nesses estudos, pediu ao pintor Jean-Louis André Théodore Géricault, o brilhante autor do colossal quadro A Balsa do Medusa (Museu do Louvre), para que pintasse uma série de retratos de seus pacientes, cada um com uma monomania diferente. Géricault atendeu o pedido e criou dez quadros, cinco deles se perderam, mas outros cinco chegaram até nossos dias e são uma verdadeira obra de um mestre da Pintura. Cada um retrata um monomaníaco, um alienado, e as descrições de cada uma das alienações são: por inveja, cleptomania, vício do jogo, grandeza militar e roubo de crianças. Em cada um dos quadros as expressões são pungentes e procuram refletir as intenções de seus retratados. A Pintura a serviço da medicina.

Gericault - portraits of the insane

A Lição Clínica no Hospital Salpêtrière
E chegamos novamente a Jean-Martin Charcot, renomado médico psiquiatra que realizava aulas práticas para seus alunos e outros médicos convidados. O pintor André Brouillet imortalizou uma dessas aulas no quadro A Lição Clínica no Hospital Salpêtrière, que mostra Charcot hipnotizando aquela que provavelmente é uma de suas pacientes mais conhecida, Marie “Blanche” Wittman. Trata-se de um quadro de retratos, ou seja, cada um dos médicos presentes é uma pessoa real que assistia às aulas, são retratados os maiores nomes da medicina na época, tais como Joseph Babinski e Gilles de la Tourette. Um quadro bem ao estilo de outro muito famoso, de Rembrant, chamado Lição de Anatomia do Dr. Tulp.

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O quadro acompanha Freud na ida para a Inglaterra
Freud conviveu com Charcot, tinha uma enorme admiração por ele, e provavelmente conheceu muitos dos médicos retratados no quadro de André Brouillet. Prova dessa admiração é que ele adquiriu uma litogravura desse quadro e, quando fugiu do nazismo indo residir na Inglaterra, levou o quadro e o colocou na parede sobre o divã na casa em que passou a residir.

O Hospital Salpêtrière hoje
Hoje chamado Hospital Pittié Salpêtrière, por ter agregado outra instituição, é um exemplo de modernidade em termos de medicina. Mas entre suas paredes, no decorrer da história, foi palco das mais absolutas atrocidades cometidas contra pacientes, e teve como médico assistente durante alguns meses, Sigmund Freud, aquele que iria criar a Psicanálise e curar pessoas apenas com a fala.